terça-feira, 23 de agosto de 2011

Azarados?


        Na última semana, a imprensa escancarou o trabalho de pessoas em condições análogas às de escravo, expondo a marca Zara como a grande vilã da vez.
         O problema, além de trabalhista, é criminal.
Apenas para ilustrar, o Código Penal estabelece pena de prisão de dois a oito anos e multa (além da pena correspondente à eventual violência) àquele que submete alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, seja em condições degradantes ou restringindo a locomoção do empregado em razão da dívida contraída com o empregador.
O crime também ocorre quando o empregador cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais, com o fim de deixá-lo no local de trabalho.
Se a vítima for criança ou adolescente, e se o crime for cometido por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é aumentada da metade.
         Não vou aqui falar do óbvio. Tentarei dizer, fugir do aprisionamento causado pelas palavras sempre ditas.
         Sempre insisto que o direito existe para servir à sociedade, não o contrário.
         Para que a lei tenha função social, é preciso que acompanhe a realidade, que efetivamente preveja algo útil, caso contrário, a punição nada mais será que um mero castigo vazio. Prender alguém ou cumprir regras trabalhistas não altera a condição dessas pessoas.
         A situação é angustiante. A mídia mostrou aquilo que todo mundo já sabe que acontece e que detesta olhar, impedindo que façamos o possível para não ver ou não pensar.
         Ninguém gosta de olhar aquilo que estraga a paisagem e, teimosamente, não dissolve.
         O fato é que vivemos numa sociedade de consumo. Estamos acostumados a substituir coisas por outras mais modernas, mais bonitas, mais úteis. O consumo exige a novidade e está em constante movimento.
         Numa sociedade de consumidores, aqueles que não consomem, não podem jogar. São desnecessários, redundantes.
         Pode parecer exagero, mas não é.
         Os reality shows estão aí para comprovar. Não existem pessoas indispensáveis. Na convivência humana, uma pessoa é útil enquanto puder ser explorada e o grande desafio é sobreviver aos outros. Aqueles desajustados, menos habilidosos, menos determinados, são definitivamente excluídos.
Excluídos do único jogo disponível, os seres humanos redundantes – desnecessários, sem uso - são inseparáveis da modernidade, são efeitos colaterais do progresso.
Não se tratam de meros desempregados, condição temporária e anormal. Sabemos a cura para o desempregado: emprego.
Já os redundantes são dispensados pelo fato de serem dispensáveis; retirados da linha de montagem, por não terem atrativos, compradores.
Afinal, o que é o empregador senão um comprador de nosso tempo disponível e de nossos conhecimentos e habilidades, enquanto lhes forem úteis?
Sem ter para onde ir ou algo para fazer, os redundantes buscam sobreviver, muitas vezes deixando seus países nativos em busca de melhor sorte. Refugiam-se na criminalidade ou servem de combustível para orgias consumistas. Uma função útil para manter o mundo no seu rumo atual.
Aliás, desempenham um papel essencial para as políticas de inclusão social e para o discurso de autoridade do Estado.
O refugo é a vergonhosa poeira debaixo do tapete de toda a produção.
Deixar ou não de comprar roupas na Zara ou onde quer que seja, nem de longe contribui para minimizar a situação dos redundantes. Seria o mesmo que tentar não comprar coisas produzidas na China, isto é, uma tarefa praticamente impossível.
Para que se busque uma solução, é preciso, primeiro, conhecer a origem e a dimensão do problema para, depois, procurar os meios disponíveis para tanto ou criar novas ferramentas, sejam elas jurídicas ou não.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Canetada

HEIN?!
   Essa foi a primeira coisa que passou na minha cabeça quando vi a notícia de que a juíza Margot Correa Bergossi, da 5ª Vara Cível do foro regional de Pinheiros bloqueou todos os bens de Marcelo Malvio Alvez de Lima, o motorista do Porsche mais falado dos últimos tempos (decisão na íntegra, clique aqui).
   Bem, vamos tentar entender as coisas.
   Entraram com uma ação para preservar bens que possam pagar uma futura indenização a ser pedida pelos familiares da vítima.
   A juíza, sem ouvir o motorista, decidiu que tudo fazia muito sentido e bloqueou todos os bens.
   Apenas para esclarecer, para que uma medida desse tipo seja concedida, é preciso demonstrar aquilo que se chama de fumus boni iuris (fumaça do bom direito) e periculum in mora (perigo na demora). Ou seja, o pedido da pessoa deve estar amparado no direito e deve se demonstrar que existe urgência na providência que se busca, para evitar um prejuízo irreparável ou de difícil reparação.
   Evidentemente, isso tudo deve estar relacionado ao pedido que, neste caso, é guardar dinheiro para futura indenização. Assim, basicamente, deveria restar comprovado que o sujeito está prestes a se desfazer do seu patrimônio ou que já está fazendo isso.
   Pois bem, na visão da juíza, Marcelo, na condução de seu veículo, a 150km/h, causou um acidente grave, com vítima fatal.
   Pronto, eis aí o fumus boni iuris. Não entendeu? Muito menos eu... O que tem a ver uma coisa com a outra, até agora ninguém conseguiu descobrir.
   Vamos continuar, porque precisamos, agora, descobrir onde está o raio do periculum in mora.
    Opa! Já encontramos! Ele está na personalidade do motorista! (por essa eu sei que você não esperava).
   Veja como tudo é muito óbvio.
   A juíza, sarcasticamente, entendeu que Marcelo é um sujeito egocêntrico e irresponsável porque "imprimir cerca de 150 Km em um veículo na via pública de uma cidade como São Paulo só pode nos levar a crer que ele, o réu, desconhece que a rua é um local público, que pertence a todos e não somente a ele". 
   Por causa disso, vou repetir, por causa disso, Marcelo certamente será irresponsável e egocêntrico no que diz respeito ao seu patrimônio também. 
    Não é evidente o link?!
   "Mas não é só." Reparem no capricho da fundamentação: "em razão da repercussão do caso junto a nossa sociedade, penso que o réu deverá ser responsabilizado com todo o rigor para que sirva de exemplo aos demais motoristas irresponsáveis e que tiram vidas precocemente no nosso trânsito".
   Você deve estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com guardar o dinheiro do cara? - pois é, eu também me perguntei...
   É irônico. Quando o processo demora, é porque demora; mas quando um juiz resolve ser pró-ativo, o povo reclama também...
   Afinal, por que um monte de processos se podemos resolver tudo num só?! E mais, com resultados incríveis.
   O sujeito vira bode expiatório, é punido severamente e, de brinde, leva-se o bloqueio de todos os seus bens! E tudo isso, claro, sem que ele saiba. Sim, porque só vai tomar conhecimento depois que tiver se danado por completo, e o advogado dele que se vire para reformar isso no Tribunal.
   É isso. Um viva às promoções de inverno!

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Canetada

   Se alguém achava que a fiança arbitrada para o rapaz do Porsche era alta, Hélio Márcio surgiu para mostrar que todos estávamos enganados.   
   No agreste sergipano, encontramos Marcelo Cerveira Gurgel, juiz da 2ª Vara Criminal de Itabaiana, que resolveu agitar aquelas bandas e decidiu fixar fiança de R$ 54,5 milhões - não, você não leu errado - para Hélio Márcio, que foi flagrado com uma arma de fogo.
  A vítima da canetada teria dito que foi contratada para matar uma pessoa, o que foi suficiente para o magistrado transformar-se em justiceiro e arrumar um jeito da criatura ficar presa até que o Tribunal de Justiça reforme sua decisão, o que, acredita-se, é uma questão de tempo.
   Ao que parece, o juiz afirmou que tem uma responsabilidade com a sociedade e não poderia ser apenas um "aplicador da lei", se fosse isso, teria fixado uma fiança baixa, e Hélio Márcio "provavelmente" teria saído da prisão e a moça estaria morta.
   Poxa vida... ele quis sair da rotina, variar um pouco... Aplicar a lei não deve permitir o exercício da criatividade... Inventar uma lei é muito mais bacana!
   Além do mais, é um prato cheio para aparecer na imprensa!
   Enquanto isso, Hélio Márcio, que sequer poderia imaginar que em um número caberiam tantos zeros, deve ter pensado na sua tremenda falta de sorte em não ter um Porsche...
   Comentar que a decisão gera um tremendo constrangimento ilegal é, a essa altura, desnecessário.
   O juiz simplesmente ignorou a finalidade da fiança e seus requisitos, na tentativa de arrumar um jeito de manter preso um sujeito que portava uma arma.  Sem dúvida, um ato de extrema responsabilidade social...
   Enfim, numa mistura de "O Justiceiro" com "Minority Report", o magistrado inaugura um espaço que resolvi batizar de "Canetada", destinado a debater decisões e manifestações em processos que, como essa, são dignas de nota.
  






quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Feliz 11 de agosto!


  Dia 11 de agosto comemora-se o dia do estudante.

  A data é celebrada porque, em 1827, nesse dia, o imperador Dom Pedro I assinou decreto imperial que criava dois cursos de Direito no país, um em Olinda e outro em São Paulo. Foram as duas primeiras faculdades do Brasil.

  Desde 1927, cem anos depois, a homenagem estendeu-se a todos os estudantes, mais do que justo.

  A data também é conhecida como Dia do Advogado ou, melhor ainda, Dia do Pendura, bem mais saboroso.

  Para quem não sabe, “pendura” é uma tradição que começou com os estudantes de Direito do Largo São Francisco (USP), em comemoração à criação do curso. Significa, basicamente, ir a um restaurante, comer, beber e prometer que pagará a conta quando terminar a faculdade. Isso, claro, com um discurso bem feito sobre comere e bebere ou ao som da conhecida melodia “garçom, tira a conta da mesa e bota um sorriso no rosto, seria muita avareza cobrar no 11 de agosto!”.

 Tradições a parte, o advogado é sempre um estudante.

 Estudioso das ciências jurídicas, das relações interpessoais, dos acontecimentos cotidianos. Enfim, tudo é motivo de estudo para o advogado, que deve sempre atentar-se a tudo.

 O advogado é o soldado do Direito.

 De todos os profissionais do Direito - Delegados, Promotores, Juízes – é sempre o advogado quem mais sofre.

 Num processo, o advogado pede alguma coisa, normalmente outro advogado argumenta em sentido oposto; o ministério público palpita e o juiz decide.

  Aliás, o promotor fica, na esmagadora parte das vezes, no mesmo prédio que o juiz.

  O advogado não. Ele sai de seu escritório, vai ao fórum, enfrenta cartórios repletos de profissionais não lá muito animados; mas, na maior parte do tempo, reza muito.

  Reza para que o processo caia com um juiz que leia as coisas; para que não vá parar num fórum que demore além do que normalmente já demora; para que não tenha um promotor tão ... promotor; para que se for ao Tribunal, caia numa Câmara (grupo que julga os recursos) em que alguém leia alguma coisa e para que não demore uma eternidade; reza para o cliente entender que a culpa não é dele.

 Como é fácil de perceber, as preces também não são atendidas, em 99% dos casos.

 Infelizmente, o Poder Judiciário é um sistema falido, onde egos guerreiam, teorias não funcionam, onde muitas vezes todo o estudo não serve para nada. Um buraco negro de milhares e milhares de processos amontoados representando, cada um deles, pessoas da sociedade que aguardam um pronunciamento sobre aspectos relevantes de sua vida.

  A cada dia percebe-se que Direito não é justiça, se é que ela existe, e não faz justiça.

  O que é o Direito então?

  Um mistério... mas isso é assunto para outro post...

  Enquanto isso, feliz 11 de agosto e não se esqueçam dos 10% do garçom! 

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A gagueira da justiça

   O filme O discurso do rei, para quem não assistiu, conta a história do Rei Jorge VI na luta para superar sua gagueira.

   Alguém pode pensar: “nada de mais, e daí?”

   E daí que a profundidade do enredo vai muito além de uma simples superação que, aliás, dependeu fundamentalmente do auxílio de um terapeuta vocal, autodidata, chamado Lionel Logue.

   O filme escancara a importância da linguagem.

   É a linguagem, o instrumento e o ambiente em que se constrói a realidade. A percepção do mundo que não é “traduzível” na linguagem, não ingressa no plano da realidade.

   Essa a importância do discurso do rei. A população inteira aguardava seu pronunciamento em um momento de guerra. Suas palavras eram responsáveis pela construção da realidade do povo naquele instante.

   Além do filme contribuir para a percepção de que o indivíduo nada mais é que linguagem; texto a ser lido pelas outras pessoas, me fez pensar no que chamei de “discurso do Direito”.

  A maioria das pessoas reclama que os advogados, juízes e promotores falam “juridiquês”; que ninguém entende e que é muito chato e cansativo.

   Se isso for realidade, será que a justiça, declarada pelo Poder Judiciário, está cumprindo sua função?

  Se o Direito está a serviço da sociedade, e não o contrário, e sua linguagem não é compreendida, é mais do que tardio o momento de parar e repensar se o tal do juridiquês funciona.

    De uma sentença inteira, o máximo que se decifra é “condenado a XXX anos de”. Isso não pode acontecer. A população, até para conhecer aqueles que os julgam, precisa entender o que lá foi decidido, sentido (sentença); as razões que levaram a uma condenação ou absolvição. Os valores que se pretende manter, o que é justo ou não.

   E isso deve ocorrer em qualquer área, seja civil, criminal, trabalhista etc. Aliás, deveria começar pelo texto da lei. Ora, se ninguém pode alegar que desconhece a lei, é evidente que a linguagem utilizada deve ser clara a ponto de qualquer pessoa entender. Isso não acontecendo, me parece perfeitamente possível o indivíduo falar que realmente não sabia.

   Já é hora do Direito largar tradicionalismos que não levam a nada e se aproximar das pessoas, caso contrário, não se encontrará nenhum Lionel Logue que ajude a resolver o problema.